Filme o ponto de mutação (Mindwalk)


Um político estadunidense (Jack Edwards, interpretado por Sam Waterston). Um velho amigo poeta (Thomas Harriman, interpretado por John Heard). Uma cientista (Sonia Hoffman, interpretada por Liv Ullman). Filme baseado na obra "The Turning Point" (O ponto de Mutação), de Fritjof Capra.
O filme começa com um take de Washington, onde, do alto de um prédio um homem aparentemente bem sucedido e preocupado observa a Casa Branca. Ele vai até a sala, pega uma caderneta telefônica e faz uma ligação para alguém que está dormindo. É Tom quem atende a ligação de Jack Edwards que perdeu a eleição para a presidência dos EUA, mas que agora se candidata a Senador e por isto se sente esgotado. Tom o convida a visita-lo em Mont. Saint-Michel*, uma ilhota medieval na embocadura do Couesnon, no departamento da Mancha, na França, onde foi construído um santuário em homenagem ao Arcanjo São Miguel.
Ao se encontrarem conversam um pouco sobre como é a cultura daquele local que já existia muito antes do relógio e a contagem do tempo eram (assim como em várias culturas antigas) as estações. Passam perto de um cemitério onde uma mulher explica o que é feito com os corpos das pessoas que moram lá e suas crenças sobre o juízo final.
Tom leva Jack a uma catedral onde no alto de uma das suas torres há o maquinário de um relógio que funciona desde muito antes dos tempos modernos e diz acreditar que aquela máquina tenha sido a causa da primeira ruptura do homem com a natureza. “Mas o relógio fez muito mais que isso, tornou-se o modelo do cosmos e as pessoas confundiram o modelo com o original. Acharam que a natureza era um grande relógio e não uma coisa viva, mas uma máquina” disse Sonia Hoffman, que aparentemente, havia acompanhado os dois amigos até ali por acaso.  
Então essas três pessoas começam a discutir o estado do mundo ao longo de uma tarde. A discussão começa com a exposição do pensamento cartesiano através da visão mecanicista de Descartes sobre o mundo e a natureza, um modelo que é comparável ao funcionamento de um relógio.
É Sonia quem conduz o que é a grande mensagem do filme. Questões filosóficas pautadas no método científico em torno da sobrevivência do planeta e o bem-estar das gerações futuras, frisando que é preciso uma nova forma de ver o mundo, a começar pela forma como percebemos o tempo, definido por Einstein como sendo uma quarta dimensão.
Sonia é uma física que se sente desiludida por ver seu trabalho científico, que tinha como objetivo aplicações médicas, ser usado para fins danosos: o projeto STAR WARS. Representa a forma racional de ver o mundo, positivista, que mesmo não concordando com o pensamento de Descartes, acaba sendo tão sistemática quanto ele na tentativa de encontrar uma explicação para o que é a vida. É preciso a dedicação de uma vida inteira para podermos chegar a uma boa conclusão do que é tudo. Vários morreram e deixaram boas contribuições; muitos ainda estão tentando. Toda esta dedicação interfere no relacionamento com sua filha, Kit, que sente falta do afeto da mãe e contesta a incapacidade desta para se relacionar com ela, em simples gestos como sair para fazer coisas juntas.
Tom nos traz para a realidade mais subjetiva, oferecendo alguns comentários ou citações poéticas (Pablo Neruda e William Blake) possibilitando explicações mais urgentes do nosso ser, sobre os sentimentos acerca do mundo, da vida, do universo. Questões que nos mostram os tolos que nós podemos ser ao ficarmos tentando encontrar explicações científicas para tudo, sendo que o nosso coração não está bem. Por causa das nossas relações com o social? Talvez. É onde entra Jack, com a responsabilidade política de cuidar, gerir, administrar a vida de milhares de cidadãos norte americanos e tenta se reconciliar ou adaptar as teorias expostas por Sonia com sua agenda política. O filme coloca de certa forma os EUA como a grande-potência-responsável-por-tudo-e-por-todos.
Após saírem da sala do relógio, Sonia argumenta que o pensamento mecanicista não é mais aplicável ao mundo de hoje. Problemas contemporâneos como a superpopulação, as mortes de crianças por desnutrição e doenças que poderiam ser evitadas, a grande dívida do terceiro mundo, economia e a destruição de florestas tropicais no Brasil, bem como a contaminação do Canal da Mancha são frutos de uma percepção mecanicista do mundo.
O exemplo do desmatamento da floresta amazônica para o cultivo do gado e a venda das terras para pagarmos a dívida externa deixou-me chocado, pois me fez refletir sobre o dever (de nós, brasileiros) em preservar esta grande riqueza mundial. Nem vendemos a madeira, queimamos tudo, e essa queima é uma das grandes responsáveis do aquecimento global; e enquanto isso os EUA gastam milhões na corrida armamentista.
Sonia acredita que o político não pode ter um olhar fragmentado sobre os problemas globais; desta forma pode até consertar uma peça que logo vai se quebrar, pois não foi observado o que se conecta a ela.
A evolução do patriarcado, e a possibilidade da ciência pura são temas debatidos também. É inegável o talento dos atores e dos cineastas que assumiram a tarefa de tornar compreensíveis conceitos difíceis em um filme mainstream. Eles conseguem manter o enredo convincente e crível, tanto em termos de drama como de argumentos. Outro ponto excitante do filme é a recitação de um poema de Neruda, que relaciona de maneira brilhante as grandes questões científicas e políticas com a realidade subjetiva de cada ser humano. Este momento é o clímax do filme.

Sonia coloca uma série de exemplos sobre como resolver as mazelas do mundo de forma globalizada, com ações simples na teoria das ciências exatas, mas impossíveis nas ciências humano-políticas. Sabemos que a medicina evoluiu bastante em termos de tecnologia, mas o seu custo também; a saúde pública não cresceu na mesma proporção. Há em nosso mundo problemas de saúde pública que poderiam facilmente ser combatidos com prevenção ou com a simples mudança de hábitos alimentares, por exemplo. É preciso começar de alguma forma a resolver tais problemas. Mas por onde começar? Na maneira de ver o mundo, afinal, tudo é uma crise de percepção. Sairia mais barato à pessoa ter acesso a uma educação alimentar do que ter que ficar tratando as suas doenças provenientes de maus hábitos e má educação, mas a visão mecanicista que nos faz correr contra o tempo não permite e o sistema completamente afetado por esta visão não encoraja a prevenção, mas a intervenção.
Jack mostra que sim, as ideias são boas, mas a política imobilizaria suas ações, pois os interesses da classe dominante o derrubariam do poder o quanto antes. O que se poder fazer é pegar alguns fragmentos do todo e tentar resolver e esperar uma oportunidade para cuidar do resto e enquanto isso ir fazendo trocas. Há muitos interesses a serem atendidos, principalmente as relações de poder.

A crueldade faz parte da história do homem. A câmara de tortura que os três visitam representa bem esta crise de percepção e “continuar vivendo neste paradigma é uma atitude genocida e ecocida”. BOFF.
Mas a violência e a exploração independem da percepção humana. A câmara de tortura já estava lá muito antes do homem ter uma visão mecanicista do mundo. Todavia havia um equilíbrio entre dois grandes princípios: o masculino (dominador) e o feminino (nutriente e gentil) e ao longo de sete mil anos foi dado voz e vez ao princípio patriarcal, porque não dar vez agora para ao outro princípio? O homem é responsável pelo abalo deste equilíbrio, ao criar ferramentas mecanicistas e armas físicas e intelectuais para homens sedentos de poder. Será que o mundo aguenta a violência com que o estamos agredindo? A natureza se fragiliza. Não devemos torturar o nosso mundo como sugeriu Bacon e sim mudar a nossa forma de perceber e questionar o mundo, pois “o que observamos não é a natureza em si, mas a natureza exposta ao nosso modo de questionamento.” HEISENBERG.
  
A explicação sobre a matéria que compõe o nosso universo nos remete até à singularidade, ou seja, segundos antes da grande explosão que originou tudo há milhões de anos: a nossa galáxia, o nosso sistema solar, a vida em nosso planeta. Sabemos que sem a luz não seria possível que existíssemos, mas até pouco tempo atrás ninguém conseguia entender como a luz do sol alcançava a terra, porque antes de entender isto era preciso entender do que a matéria é composta. Até agora sabemos que o que a compõe é o átomo, mas o que é um átomo? Sabemos que o que o compõe são os prótons e os elétrons e estes se movimentam em regiões relativamente vastas de espaço vazio.
Quantos átomos tem uma laranja? Para responder teríamos de aumentar a laranja até que ficasse do tamanho da terra para podermos vê-los e os átomos ficariam do tamanho de cerejas (miríades de cerejas). Mas e o núcleo dessas cerejas? Invisível é a resposta, pois mesmo que ampliássemos o átomo ao tamanho de uma bola de futebol seu núcleo ainda seria invisível, e se ampliássemos para o tamanho de Saint Michel o núcleo seria do tamanho de uma pedrinha. Sendo assim o que torna a rocha tão sólida e não faz com que ela caia sobre ela mesma? Para entender isto precisamos desafiar até as ideias convencionais sobre a existência da matéria, ir além da imaginação e admitir que a matéria não existe com certeza em lugares definidos, mas que mostra tendências (probabilidades) a existir.
A matéria é sólida porque padrões de probabilidade são difíceis de ser comprimidos? Padrões de probabilidade de que? De conexões. No nível subatômico o átomo se dissolve numa série de conexões. Há também uma troca continua de matéria e energia entre todas as coisas, ou seja, tudo faz parte de uma teia inseparável de relações.
Há uma teoria surgindo que colocam as ideias ecológicas tratadas no filme numa estrutura científica coesa e coerente: TEORIA DOS SISTEMAS. Dos sistemas vivos. Nesse conceito dos sistemas, a vida - a essência da vida - é a auto-organização. É uma explicação nada poética. Até certo ponto superficial, sendo que somos seres extremamente complexos.
Einstein (teoria da relatividade – partícula/onda), depois veio Heisenberg com o princípio da incerteza (física quântica - física das possibilidades), Watson e Crick que decifraram o código genético da vida (estrutura do DNA - informação) e, mais recentemente, Edward Lorenz (teoria do caos – atratores caóticos), Benoit Mandelbrot (teoria dos fractais), David Bohm (ordem implicada), René Thom (teoria das catástrofes), Lotfi Zadeh (lógica fuzzy), Amit Goswami (universo autoconsciente), o Nobel Ilya Prigogine (estruturas dissipativas), Humberto Maturana e Francisco Varela (autopoiese - biologia do amor),  Leonardo Boff (teologia da libertação), Edgar Morin (unita multiplex -  transdisciplinaridade), Pierre Lévy (cibercultura), Giles Deleuze, Rupert Sheldrake, Felix Guatari, Peter Burke, Lynn Margulis, Niklas Luhmann, Murray Gell-Mann, Alvin Toffler, Fritjof Capra, Jürgen Habermas, Pedro Demo etc.
  
INVESTIGANDO A ESTRELA SEM FIM.

Sim eu também tenho a sensação de investigar a estrela sem fim e acordar nu em minha rede como um peixe preso no vento. Esta busca parece interminável. “E você corre e corre para alcançar (jogar a minha rede para captura-lo) o sol, mas ele está indo embora no horizonte e girando ao redor da Terra para se levantar atrás de você outra vez.” Time
Quão longe estou jogando minha rede? Ao final terei capturado somente a mim mesmo? Sei que pensar sobre todas estas questões, entrar em contato  com tanta informação, com tantas visões e formas de ver o mundo, conviver com a subjetividade, com o social, podem me deixar louco como Dilthey em seu sonho em que tentava juntar as ideias de grandes filósofos. 
 "Também não joga a sua rede nesses lugares distantes da física quântica e da teoria dos sistemas e não acha que só acaba capturando de novo a si mesma? Como um peixe dentro do vento. E as outras pessoas em seu sistema, Sonia? As que você ama. E esses turistas não são como peixes presos no vento? Talvez seja pior para elas, pois não têm como descrever isto. Onde é o nosso lugar lá dentro, o das pessoas reais, com suas qualidades, desejos, fraquezas? Qual é o seu lugar lá dentro? E o de Kit?"
Esse é o questionamento do poeta. Que parece uma carapuça te apanhando e te servindo.

Peixe preso no vento

O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados? 
Respondo que o oceano sabe. 
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma hora e um mar certos?
Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornucópia feita de infinita madrepérola.
Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.
Pablo Neruda


Jaguadarte

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos familvos
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos
Foge do jaguadarte, o que não morre!
Garra e agarra, bocarra que urra!
Foge da ave fel fel, meu filho, e corre
Do frumioso babassurra!”
Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo
Na árvore Tamtam ele afinal parou um dia sonilundo
E enquanto estava em sussustada sesta
Chegou o jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta
E borbulia um riso louco!
Um, dois! Um, doi! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para tras para diante!
Cabeça fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.
“Pois então tu mataste o jaguadarte”
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!
Ele se ria jubileu.
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam no familvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.

Lewis Carrol. Alice no país das maravilhas. 
Tradução do "Jabberwacky" por Augusto de Campos

Eu Isaac

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